E aí você se pergunta: como elas chegaram lá?
Sabe aquelas mulheres que entram num lugar e você automaticamente pensa "nossa, ela tem presença"? Não é sobre a roupa que estão usando (apesar de ser também, calma que você vai entender). É sobre algo mais sutil: elas parecem estar em casa na própria pele. Como se tivessem decifrado um código secreto que o resto de nós ainda está tentando descobrir.
Eu fico observando essas criaturas raras - na rua, nos cafés, nos bares - e sempre chego à mesma conclusão: parece que elas não se vestem para impressionar. Consigo imaginar cada uma na frente de seus espelhos construindo aquele visual e pensando no que querem refletir - não pro outro, pra si mesmo. Elas se vestem para se reconhecer no espelho.
✷ O manual de instrução que vem de dentro (e não é fixo)...
Durante meus anos na faculdade de psicologia, eu lidava muito com mulheres em situações de crise. E tinha uma coisa que me chamava atenção: conforme apareciam melhoras no bem-estar, elas ficavam mais alinhadas com aquilo que vestiam. Não se tratava de fazer um guarda-roupa novo - elas estavam se entendendo melhor no espaço terapêutico. Era como se a terapia destravasse não só questões emocionais, mas também uma espécie de GPS interno que dizia "isso combina comigo, isso não combina". Quanto mais elas se conheciam por dentro, mais sabiam o que queriam por fora.
Porque veja só: quando você escuta uma música e ela te arrepia, você não está sentindo a música que está na moda. Você está sentindo a música que dialoga com algo seu, íntimo, pessoal. Por que com roupa seria diferente?
A diferença é que ninguém te ensina a ter esse ouvido para o próprio estilo. Te ensinam a seguir trends, a copiar influencers, a comprar o que "todo mundo está usando". O resultado disso? Mulheres perdidas entre araras, procurando não uma peça que converse com elas, mas algo que as faça parecer com outras pessoas.
✷ Por que todas as "autênticas" estão iguais?
Vivemos numa época estranha onde todo mundo quer ser autêntica, mas todo mundo se veste igual. É como se tivéssemos terceirizado nossa personalidade para algoritmos do TikTok. Como bem observou Naomi Wolf em "O Mito da Beleza": "Ser linda exige a obediência a certos rituais e o consumo de certos produtos. Antes de ser 'linda', a mulher é uma consumidora."
Podemos chamar isso de epidemia, então? Transformaram autoexpressão em produto de prateleira. Você já reparou como todas as "influencers de moda" parecem ter saído da mesma gráfica? Mesmo cabelo, mesmo filtro, mesmo closet. E aí a gente fica lá, seguindo 50 perfis que vendem a promessa de "encontre seu estilo" mas são literalmente indistinguíveis entre si.
O resultado é aquela sensação que toda mulher já teve: guarda-roupa lotado, mas "não tenho nada para vestir". Claro que não tem. Porque nada ali é seu de verdade. São fantasias emprestadas de pessoas que você nem conhece.
E aí eu fico pensando: será que a gente perdeu a capacidade de se vestir por instinto?
✷ As mestras da personalidade vestível...
E foi aí que comecei a estudar mulheres que claramente sabiam quem eram, e como isso transbordava para o que vestiam. Gal Costa, Rita Lee, Sonia Braga. Três brasileiras que fizeram da roupa uma extensão da personalidade, não um disfarce.
Gal Costa: A Transcendência do Óbvio
Gal tinha uma coisa que poucos artistas conseguem: uma presença (quase angelical, mas isso aí é uma opinião pessoal minha hahah) que dispensava qualquer explicação. Ela entrava no palco e você sabia que algo especial ia acontecer. Não era sobre o figurino, era sobre como ela habitava dentro daquela roupa.
Nos anos 70, quando ser elegante significava seguir protocolos rígidos, Gal aparecia descalça no palco, com aqueles vestidos que pareciam ter sido escolhidos em cinco minutos mas causavam mais impacto que produções milionárias. Ela misturava referências afro-brasileiras com psicodelia internacional, usava flores no cabelo quando todo mundo usava penteados arquitetônicos.
O genial disso tudo era que Gal nunca parecia estar se esforçando. Era como se ela tivesse nascido sabendo que chique mesmo é o que vem de dentro para fora. A forma como você se move no mundo é beeem mais importanto do que o tecido que repousa no seu corpo.
Rita Lee: A Alquimia do Imprevisto
Rita Lee era pura química experimental aplicada, minhas amigas. Ela pegava elementos que não deveriam funcionar juntos de jeito nenhum e criava looks que viravam referência. Era a rainha de transformar acidente em marca registrada. Conta a lenda que ela começou a usar óculos enormes porque tinha fotofobia, mas em vez de tentar disfarçar, fez deles sua marca registrada. O cabelo vermelho? Inspirado no Ziggy Stardust do Bowie, mas que acabou virando mais brasileiro que qualquer interpretação gringa da brasilidade da artista.
Rita tinha uma relação quase dadaísta com a moda. Ela roubava literalmente (roubou mesmo, gente! Dá um google pra você ver) peças em Londres (as famosas botas da Biba que nunca foram devolvidas), usava vestido de noiva emprestado em festival, misturava peças de brechó com achados de grife. Para Rita, a história da peça importava mais que a etiqueta. E o melhor é que a diva fazia tudo isso sem um pingo de pose. Era natural como respirar. Como se ela tivesse entendido desde sempre que moda é pra ser mais um playground do que um altar de sacrifício.
Sonia Braga: A Revolução Silenciosa
Sonia Braga fez algo que hoje parece óbvio, mas na época era revolucionário: ela simplesmente decidiu ser brasileira sem pedir desculpa. Hã? O que isso quer dizer? Numa época em que o padrão de beleza global era o loiro e comportado, ela aparecia com seus cachos naturais e aquela sensualidade que não explicava, apenas pairava no ar. O truque de Sonia? Ela dominou a arte de vestir poucos elementos com máximo impacto. Um tubinho que abraçava o corpo sem apertar, acessórios dourados que conversavam com a pele, cabelo natural que ela nunca tentou domesticar. Era sobre qualidade, não quantidade.
O mais interessante é que Sonia nunca se rendeu ao exotismo. Ela não virou caricatura tropical para agradar olhar estrangeiro. Ela simplesmente é ela mesma (e o mundo parou para prestar atenção).
✷ O que a terapia me ensinou sobre guarda-roupa...
Voltando para minha experiência com pacientes... o que eu observava era que mulheres em processo de autoconhecimento desenvolviam uma espécie de radar interno. Elas começavam a saber, quase por instinto, o que as fazia sentir poderosas e o que as fazia sentir disfarcadas. Não era sobre ter mais dinheiro para comprar roupas melhores. Era sobre ter mais clareza sobre quem elas eram. E isso mudava completamente a relação delas com o guarda-roupa.
Uma paciente que marcou muito a minha experiência enquanto acadêmica, me disse uma vez: "Antes eu me vestia para não ser notada. Agora eu me visto para me reconhecer." Pronto. Ela tinha decifrado o código.
✷ Que história é essa de radar interno?
A boa notícia é que todo mundo tem essa capacidade. A má notícia é que a gente passou tanto tempo ouvindo outras vozes que esqueceu como escutar a própria.
Comece prestando atenção no seu corpo. Tem texturas que te fazem sentir confiante e outras que te fazem querer se esconder. Seu corpo sabe coisas que sua mente ainda está processando.
Observe seus rituais inconscientes. Como você se arruma quando está se sentindo bem? Que peças você escolhe nos dias em que acordou sabendo exatamente quem é? Essas são suas pistas.
Pare de comprar personagem. Antes de levar qualquer coisa para casa, se pergunte: "isso conversa com quem eu sou ou com quem eu acho que deveria ser?"
Misture suas referências sem pedir permissão. Você pode gostar de Billie Eilish e de Elis Regina. De minimalismo escandinavo e maximalismo brasileiro. A vida é grande demais para caber numa única estética.
✷ O dia que você para de se vestir para os outros
No final das contas, desenvolver estilo próprio é um ato político silencioso. É decidir que sua roupa vai contar sua história, não a história que os outros querem que você conte.
É entender que a mulher mais bem vestida da sala não é necessariamente a que está seguindo todas as tendências. É aquela que parece estar em casa na própria pele.
Acordar, olhar para o guarda-roupa e perguntar: "quem eu sou hoje?" ao invés de "o que todo mundo vai achar?" Porque no final, minha linda leitora, as mulheres mais interessantes não são as que seguem todas as regras. São as que sabem exatamente quando quebrar cada uma delas.
E você? Já sabe quem é quando ninguém está olhando?
Dalila Clementino